JUMPIN’JAZZSWINGDOOWOPBLUES por MBgroove e Roberto Muggiati

Publicado por Maurício

Tópicos: Clube do Vinil, ler e ouvir na web

HÁ TEMPOS QUE O DJ MARCELLO MBGROOVE queria mergulhar nas raízes da música negra, pra mostrar como JAZZ, BLUES, gospel e outros gêneros, desde muito cedo, eram capazes de incendiar uma pista de dança com a mesma malícia & furor do rock´n´roll, funk ou hip-hop.

JÁ NAS DÉCADAS DE 30, 40 e 50 haviam canções aceleradas, apimentadas e sem papas na língua, que incitavam na juventude os movimentos lascivos que deixavam os “homens de bem” de cabelo em pé! Já no jazz e no blues, e nas fusões e derivações que acabariam por dar origem ao rock e ao funk, incluindo aí o soul e o doo wop – gênero vocal folcloricamente associado às barbearias dos bairros negros de Nova Iorque e Chicago, aquela cantoria pra espantar o tédio, entre um cliente e outro.

MBgroove frequenta o CLUBE DO VINIL desde sempre, e foi conversando com o livreiro-DJ Maurício Gouveia sobre essa paixão de ambos, o Doo Wop, que decidiram gravar esse especial para a RÁDIO GRAVIOLA.

O especial JUMPIN’JAZZSWINGDOOWOPBLUES vai ao ar no sábado 14 de abril, às 18h, com reprise na quarta-feira, dia 18, às 22h. Escute acessando http://www.radiograviola.com/

O DJ MBgroove, está na praça há 20 anos e integra o coletivo Vinil é Arte, que reúne DJs do Rio, São Paulo e Minas Gerais que preferem trabalhar com LPs. Atualmente MBgroove trabalha também no SESC (na programação musical) e é curador artístico da Feira de Discos de Vinil do RJ. Para conhecer melhor seu trabalho acesse: https://www.mixcloud.com/MBgroove/

ROBERTO MUGGIATI, renomado jornalista e pesquisador musical, na ativa desde os anos 50, escutou o programa e escreveu UM ARTIGO ESPECIALMENTE PARA O CLUBE DO VINIL DO SEBO BARATOS.

Ah, importante lembrar: ele já foi DJ no nosso Clube! Escute no bandcamp, onde arquivamos nossas farras vinílicas (sim, tudo feito com LPs e compactos):

https://clubedovinildabaratos.bandcamp.com/track/jazz-o-som-e-o-mito-lado-a

https://clubedovinildabaratos.bandcamp.com/track/jazz-o-som-e-o-mito-lado-b

https://clubedovinildabaratos.bandcamp.com/track/jazz-o-som-e-o-mito-bonus-ep

e vamos ao artigo, que fica valendo também como parte dos nossos festejos pro RECORD STORE DAY de 2018:

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Volta ao mundo das mutações musicais em 8000 toques

Por ROBERTO MUGGIATI

No vinil histórico Tropicália – 50 anos esta noite – a proposta é a geleia geral (título de uma das doze faixas): juntar no mesmo saco as canções mais díspares possíveis, enfeixadas pelos arranjos ousados e grandiloquentes de Rogério Duprat, misturando violinos e guitarras num Sergeant Pepper’s tropical. Assim, a súplica católica Miserere nobis ladeia com o canto de terreiro Bat macumba. O kitsch trágico do operístico brega Vicente Celestino – Coração materno, que gozadores de plantão chamaram de Churrasquinho de mãe – coexiste com o canto da garota urbana (Baby, por Gal), e este com o canto da garota suburbana (Lindonéia, pela Musa da Bossa, Nara Leão, em tom abolerado). Tem o latino Três caravelas, de Algueró Jr e G. Moreu, na versão de João de Barro. Tem o rock dos Mutantes interpretando Panis et circenses, de Caetano e Gil. Em Geléia geral, de Gil, os versos de Torquato Neto anunciam: “Um poeta desfolha a bandeira/E a manhã tropical se inicia/Resplandecente, cadente, fagueira/No calor girassol com alegria/Na geleia geral brasileira.” E o gran finale é o inesperado Hino do Senhor do Bonfim. Os tietes exultaram: “Até que enfim, a modernidade chegou.” Ledo engano.

Os cruzamentos e fusões musicais não foram uma criação do século 20, longe disso. Vamos viajar apenas 300 anos atrás. Já no barroco, Bach e sua turma turbinavam suas fugas com danças de origem popular, como a siciliana, a giga, a gavotte, o minueto, a chacona, a passacaglia, a tarantela, a bourrée, a sarabanda – e vamos parar por aqui, a lista é interminável.

Mozart, Beethoven e os românticos depois deles, também se serviram prodigamente do cardápio popular. Os russos, mais que a maioria, se valeram do seu rico folclore – de Borodin, Tchaikowski e Rimski-Korsakov aos vanguardistas Shostakovich, Prokofiev e Stravinsky. (O velho Igor compôs até um tema de jazz para a orquestra de Woody Hermann, Ebony Concerto.). O húngaro Bartok, outra lista interminável. Chamo atenção só para os brasileiros, notavelmente Villa-Lobos.

Na área semierudita, violinos húngaros tomaram de assalto a Paris da belle époque e as operetas viraram a grande febre. A abertura de Orfeu nos infernos, de Offenbach, tornou-se o hino do can-can, de forte carga erótica em que as dançarinas levantavam os saiões e erguiam as pernas sem vestir nada por baixo.

De Paris para Nova Orleans: a cidade no delta do Mississipi foi uma importante incubadora de fusão musical, na virada dos séculos 19/20. Um dado marcante: a forte influência da cultura afroamericana. Na Luisiana, nas margens lamacentas dos rios ou na poeira dos campos de lavoura, ex-escravos e seus descendentes contribuíram com seus spirituals e gospels, seus cantos de trabalho e de prisão, para a criação do blues. Enquanto isso, na urbana Nova Orleans, maior cidade da Luisiana – que foi sucessivamente francesa, espanhola e americana – começava a surgir um importante movimento de música instrumental. Reza a lenda que as bandas marciais da Guerra Hispano-Americana se desfizeram na cidade e seus instrumentos eram vendidos a troco de nada nas lojas de penhores.  Nascia assim o jazz, com uma profusão de bandas que saíam a tocar pelas ruas, nas festas e nos enterros, nos piqueniques em parques, nos comícios políticos e em alguns bares que começavam a acolher a nova música. Pouco antes do jazz, um estilo pianístico fez sucesso, o ragtime, contando com um meio de reprodução mecânico: o rolo de pianola. Incluído na trilha do filme Golpe de Mestre (1974), o ragtime voltou a ser um sucesso retumbante. Já o piano de jazz, por falta de mobilidade, fixou-se nos bordéis de Storyville, o maior bairro de prostituição do mundo.

A primeira reprodução sonora foi feita por Thomas Alva Edison em 1877 num cilindro de cera. Edison previa o uso da gravação para funções de escritório e não viu seu potencial para a área do entretenimento. Mas logo a invenção de Edison levava música às massas. Os discos de goma-laca, em 78 rotações-por-minuto, suplantaram os cilindros de cera. Em 1917, uma banda branca de jazz de Nova Orleans – a Original Dixieland Jass Band (ODJB) – foi convidada para tocar música de dança no Reinseweber’s Café de Nova York. Lá, foi convocada pela Victor Talking Machine Company para gravar um disco de 78 rotações com dois lados: Livery Stable Blues e Dixie Jass Band One Step. O primeiro disco de jazz, gravado em 26 de fevereiro de 1917, um domingo, foi lançado uma semana depois, em 6 de março. O preço: 75 centavos. A venda: mais de um milhão de cópias.

As novas tecnologias sonoras aceleraram as fusões musicais. Além do disco, surgiram as jukeboxes, as transmissões radiofônicas, o cinema (som e imagem), depois a TV, o K7, o videoteipe, o CD, o DVD e tudo mais que vocês conhecem.

Os roaring twenties desencadearam uma mania irrefreável de danças: Charleston, Dixieland One-Step, Shimmy, Jitterbug, Lindy Hop, Breakaway, Black Bottom, Fox-Trot. Até o Brasil exportou: o maxixe dos chorões virou moda na Europa e na América. Surgiram as saias curtas, mais leves, que possibilitavam às mulheres dançar estes ritmos frenéticos. As moças de saias curtas eram as melindrosas – flappers em inglês, por causa daquele movimento do Charleston de abrir e fechar as pernas com ajuda das mãos (to flap = bater asas).

O jazz evolui, as big bands do Swing dominam os salões de baile e os auditórios de rádio, até serem destronadas no início dos anos 50 pelo bebop. (O termo veio da gravação de Lionel Hampton que consta deste programa, Hey Ba Ba Rebop.) O vinil se impõe nos anos 50 – com as versões hi-fi e estéreo – e abre novas possibilidades para o jazzista, que agora pode improvisar sem  o limite dos três minutos do disco de 78 rpm.

No bojo do bebop, a fusão que mudou o jazz, vem a música afro-cubana promovida principalmente por Dizzy Gillespie, com seus bongôs e sua congas. E, também, a influência do mambo e do chacha chá para a música dos anos 50/60. Tem ainda o jump blues de Louis Jordan, um híbrido dançante de jazz, blues e boogie-woogie. E o onomatopaico doo-wop, que Frank Zappa parodiou numa banda fake chamada Reuben and the Jets, embora o próprio doo-wop já fosse uma parodia de si mesmo.

Correndo por fora, principalmente entre o público afrodescendente, o blues absorve elementos do Country and Western e se dinamiza com guitarras elétricas gerando o rhythm & blues que, encampado pela juventude branca, se transforma no rock ‘n’ roll e estoura em 1955. O divisor-de-águas é a gravação de Bill Haley and his Comets, Rock Around the Clock, que desbanca a Cerejeira Rosa de Perez Prado e atinge em 9 de julho ao primeiro lugar na lista de hits da Billboard. O roquenrol chega como uma bomba de retardo na Grã-Bretanha, e explode em 1962 como rock, simplesmente, com bandas como Beatles, Rolling Stones, The Who, The Animals. O jazz americano, para competir com a invasão do rock britânico, apela para a bossa nova (jazz samba) e volta à crista da onda. No final dos anos 60, o jazz adere ao rock: é a fusion, movimento liderado por Miles Davis. O rock adere ao reggae jamaicano (Eric Clapton, I Shot the Sheriff) e à raga indiana (George Harrison toca sitar em Norwegian Wood). A gravadora alemã ECM começa a juntar músicos de diferentes países (Egberto Gismonti com o saxofonista norueguês Jan Garbarek; Naná Vasconcelos com os americanos Don Cherry e Colin Walcott, no Codona.). É o embrião de uma World Music instrumental.

O jazz sobrevive bem, obrigado. É coisa de gente fina, para consumo moderado, uma marca de qualidade única, bom de marketing e de merchandise. Festivais pelo mundo afora prestigiam a música e afagam o ego do artista, longe daquela imagem do marginal duro e drogado. Muitos músicos se apresentam até em ternos de Armani. Wynton Marsalis resume a imagem do jazzman de hoje: instrumentista de técnica impecável, premiado tanto no jazz como no erudito, improvisador brilhante, compositor idem, arranjador, crítico, pedagogo, gestor, representa o músico polivalente que os tempos atuais exigem, um homem para todas as estações.

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ALGUMAS DIVAGAÇÕES minhas (este que vos escreve é o Maurício Gouveia):

1) como é difícil classificar certas canções, na medida em que jazz, blues e soul se confundem! O próprio Doo Wop é uma fusão bastante curiosa de soul com um monte de outras coisas, e me fascina o quanto os sucessos radiofônicos, ainda hoje, parecem obedecer, em termos de estrutura da canção, à “receita” consagrada pelos Platters, Coasters, Marcels & afins.

2) o jornalismo e a historiografia dedicada ao rock costuma ser mais referenciada pelos artistas ingleses do que pelos norte-americanos. é mais comum os autores falarem de Beatles, Rolling Stones, Led Zeppelin, David Bowie, Pink Floyd, U2 e Oasis, por exemplo, ao invés de Beach Boys, Aerosmith, Neil Young, Grateful Dead, Bruce Springsteen e afins. Tenho a impressão de que os ingleses intelectualizaram e estilizaram o rock, enquanto que nos EUA ele permanece mais próximo as suas raízes Rhythm & Blues, de modo que muito frequentemente os artistas ianques parecem estar fazendo outra coisa – um country ou um blues -, o que estranhamente parece fazer com que os críticos subestimem o rock norte-americano.

3) a música negra norte-americana parece ter desde sempre um alto teor sexual, talvez mais associado, no imaginário social, ao rock′n′roll. E hoje, tendo o rock já “envelhecido”, é o hip-hop que talvez seja acusado de vulgaridade e sexismo. Mas muitas dessas canções dos anos 30 e 40 são igualmente “mal-criadas”. Me chama a atenção as gírias e tipos do submundo, as letras sobre cafetões e foras-da-lei.

4) o jazz tornou-se, com o tempo, um gênero muito cerebral, festejado pelo virtuosismo técnico e dado à abstrações. Imagino a platéia em silêncio absoluto, sentada, bebendo vinho ou uísque, fascinada com os malabarismos técnicos do saxofonista. Mas esse programa recorre ao jazz dançante e acelerado, o que nos remete ao glorioso período das Big Bands. O que isso nos diz sobre o gosto popular? E sobre esse instinto para a dança? Serão os homens animais dançantes por excelência?

5) a segunda metade do século XX foi dominada pelo LP: não era apenas a fonte do que a rádio transmitia, mas também um objeto estocado aos montes em todas as casas, todas elas com uma vitrola bem posicionada na sala-de-estar. Durante 50 anos as pessoas frequentaram lojas de discos com a mesma frequência com que iam à sapatarias ou farmácia. Há uma relação íntima com a música (os discos que o sujeito escutava em casa, sozinho, buscando certa simetria entre o som ambiente e seu estado de espírito) que não existia antes, quando era preciso ir a um evento, onde os músicos necessariamente se apresentavam para uma platéia.

O LP deixou de ser uma compilação de singles bem-sucedidos e tornou-se uma obra conceitual: os artistas passaram a compor suas canções como se elas fossem capítulos de uma obra maior, o tal do álbum. O álbum costuma ter uma tema ou uma “proposta”.

Há um ótimo artigo sobre isso publicada pela revista Piauí: “A Era do Disco”, do Lorenzo Mammí, professor da USP: http://piaui.folha.uol.com.br/materia/a-era-do-disco/

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O fenômeno do DJ não seria uma derivação dessa “Era do Disco”? é claro que muitos DJs despejam canções de forma muito aleatória, com os DJs que tocam em festas de casamento. Mas os DJs realmente respeitados, como o MBgroove, tomam muito cuidado com seu repertório e com a ordem em que as canções serão executadas.

O “bom” DJ não apenas “encaixa” as canções com fluidez (evitando mudan as bruscas de andamento e de tonalidade), mas tentam “reger” o humor do ouvinte: começo de festa é mais tranquilo, as pessoas estão chegando e se cumprimentando; um grupo se anima e toca-se pra eles; a pista enche e o DJ solta algo “mais quente”; puxa o freio quando vê que o povo está cansando, é a deixa pra quem quer pegar outra cerveja ou paquerar um pouco; um set de lentas pra auxiliar a paquera; volta-se aos hits etc etc. E DJs realmente ótimos vão além: podem até “contar uma história” com suas escolhas de repertório e sequenciamento.

Será que esse DJ, tal como eu descrevi, ainda faz sentido?

Neste programa o DJ MBgroove tocou um repertorio que ele de fato utiliza em certas festas, como a Manie Dansante, que acontece em boates e duram a madrugada toda. Eu mesmo, que tenho 39 anos, me surpreendo com o fato de haver um público jovem, de 20 a 40 anos, se chacoalhando noite adentro ao som de jazz e blues dos anos 30 e 40. Atribuo essa proeza aos DJs, porque n o consigo imaginar um software que reunisse canções tão díspares (ainda que afins) com coesão, numa narrativa (ordem) capaz de dar sentido ao evento (no caso: botar a multidão pra dançar, entreter a galera). Seria uma prova de que os DJs ainda são necessários?

Essa última pergunta me parece especialmente pertinente dado que as tecnologias atuais (serviços de streaming que sugerem conteúdo ao consumidor com base em programas que usam o histórico do usuário para identificar padrões de interesse) parecem sugerir a abolição do curador tradicional (o crítico musical, o jornalista, o colunista).

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